DIREITO EM PÓS-GRADUAÇÃO
Qual o valor jurídico das recomendações da Organização Mundial de Saúde?
27 de abril de 2020, 8h00

Para poder responder à pergunta do título, faz-se necessário primeiro
lançar alguma luz sobre o que é a OMS, discorrer sobre o Regulamento Sanitário
Internacional e, num terceiro momento, abordar o peso jurídico das prefaladas
recomendações.
A Organização Mundial da Saúde e suas funções
O artigo 57 da Carta das Nações Unidas [1945] versa sobre a criação de agências internacionais especializadas nas áreas econômicas, social, cultura, educacional e sanitária1. Tal proposição gerou frutos já em 1946, na Conferência Internacional de Saúde, que aprovou a Constituição da Organização Mundial da Saúde, internalizada no Brasil pelo Decreto nº. 26.042/1948.
De acordo com a Constituição da OMS, o objetivo da agência é “[...]
conduzir todos os povos ao nível de saúde mais elevado possível” [art. 1º] e
suas funções podem ser sintetizadas em proposições colaborativas, no
estabelecimento de padrões internacionais na área de saúde, auxílio a Estados
para melhora de seus serviços de saúde, elaboração de estudos científicos,
padronização de nomenclatura de doenças [o famoso Cadastro Internacional de
Doenças – CID]2 e até
mesmo o auxílio material direto, se assim consentir o respectivo Estado [art.
2º]. Os verbos ali utilizados — auxiliar, fornecer, prestar, estabelecer, estimular,
etc. — denotam uma agenda de fomento, colaboração e coordenação, sem mecanismos
de enforcement de suas políticas.
Uma linha de atuação mais incisiva aparece no artigo 21 da Constituição
da OMS, que defere à Assembleia Mundial da Saúde, órgão deliberativo da OMS, o
poder de emitir regulamentos sobre temas diversos, dentre os quais, “medidas
sanitárias e de quarentena e outros procedimentos destinados a evitar a
propagação internacional de doenças” [Constituição da OMS, art. 21, “a”]. Essa
foi a base para edição do Regulamento Sanitário Internacional – RSI de 2005,
que entrou em vigor no Brasil quinze anos depois, por meio do Decreto nº.
10.212/2020, e às portas da pandemia da Covid-19.
Eis, portanto, uma primeira conclusão parcial: a OMS não é uma
“vigilância sanitária internacional”, não exercendo poder de polícia ou
sancionatório perante os Estados Partes, como a ANVISA e equivalentes fazem no
âmbito interno; a OMS aspira melhorar o nível de saúde, mas nesse mister não
anula, substitui ou suplanta estruturas governamentais e repartições de
competência locais, tampouco se sobrepõe aos centros de decisão domésticos.
O Regulamento Sanitário Internacional [RSI] e sua aplicação na crise da
Covid-19
O RSI almeja “[...] prevenir, proteger, controlar e dar uma resposta de saúde pública contra a propagação internacional de doenças, de maneiras proporcionais e restritas aos riscos para a saúde pública, e que evitem interferências desnecessárias com o tráfego e o comércio internacionais” [art. 2º]. Cuida-se de diploma fundamental para lidar com situações emergenciais, contendo minúcias a respeito da gestão de portos, aeroportos, transporte de cargas, passageiros, dentre outras. Uma das principais obrigações do Estado Parte é notificar a OMS acerca de eventos que possam se constituir numa emergência de saúde pública de importância internacional, bem como compartilhar todas as informações relevantes [art. 6º e 7º], de modo a permitir a pronta resposta em termos de contenção e prevenção. Para alguns, a China teria descumprido esse dever de notificar e compartilhar dados pela demora em notificar a OMS sobre o surto de Covid-19, bem como por fornecer informações incompletas3.
O RSI conceitua emergência de saúde pública de importância
internacional como “um evento extraordinário que, nos termos do
presente Regulamento, é determinado como: (i) constituindo um risco para a
saúde pública para outros Estados, devido à propagação internacional de doença
e (ii) potencialmente exigindo uma resposta internacional coordenada”. A
Covid-19 é uma emergência de saúde pública e a OMS decretou situação de
pandemia em 11 de março de 20204 e, dias
depois, publicou “Ações Críticas de preparação, prontidão e resposta
à Covid-19”, documento técnico contendo quatro cenários possíveis: 1)
Países sem casos; 2) Países com casos esporádicos, importados ou localmente
detectados; 3) Países com grupos de casos em locais geograficamente
delimitados; 4) Países com transmissão comunitária, isto é, disseminada. Dentre
as recomendações temporárias encontram-se a higiene das mãos,
etiqueta respiratória e prática de distanciamento social, calibrados consoante
o grau de disseminação da doença5. Além dessas
disposições, o site da OMS traz uma longa série de protocolos, atualizados
quase diariamente, listando parâmetros para redes hospitalares, laboratórios,
cuidados com pessoal de saúde, coleta de dados e muitos outros6.
Valerio Mazzuoli defende que tais protocolos tem natureza vinculante,
invocando o art. 2º, “k” da Constituição da OMS, que atribui à Assembleia
Mundial da Saúde [órgão da OMS] a competência de “k) Propor convenções, acordos
e regulamentos e fazer recomendações respeitantes a assuntos internacionais de
saúde e desempenhar as funções que neles sejam atribuídas à Organização, quando
compatíveis com os seus fins”7.
Respeitosamente, discorda-se. Não cabe invocar o art. 2º, “k” da Constituição
da OMS, uma vez que as recomendações tão propaladas na mídia [isolamento
social, higiene das mãos, uso de máscaras, etc] não provêm da Assembleia Mundial
da Saúde; as mesmas foram concebidas dentro do regime especial do RSI, que
disciplina a edição de recomendações em situações emergenciais, como a de uma
pandemia.
Retomando, deve-se ter em conta que o RSI é explícito quanto ao caráter
não mandatório das recomendações. De acordo com o documento, “recomendação
temporária significa uma orientação de natureza não-vinculante emitida pela OMS
consoante o Artigo 15, para aplicação por tempo limitado, baseada num risco
específico, em resposta a uma emergência de saúde pública de importância
internacional, visando prevenir ou reduzir a propagação internacional de
doenças e minimizar a interferência com o tráfego internacional”8. A
justificativa para o caráter não vinculante é tanto de natureza
política, evitando uma intrusão demasiada nos Estados Partes, como técnica,
pela inexequibilidade de uma parametrização de políticas de saúde pública para
centenas de Estados Partes, haja vista as infinitas peculiaridades locais e os
limites materiais da própria OMS.
Todavia, dizer que as recomendações da OMS são facultativas não as torna
juridicamente irrelevantes. Os tribunais brasileiros são bastante deferentes às
posições da OMS, como se viu no caso da proscrição do uso de amianto9, prognóstico
de doenças10, identidade
de gênero e alteração do registro civil independentemente de cirurgia11, proibição
de equipamentos de bronzeamento artificial12, só para
ficar em alguns exemplos. Não obstante carentes de força vinculante normativa,
na prática, as recomendações da OMS possuem tamanho peso técnico-científico que
praticamente “tem força de lei”, amarrando as instâncias administrativa e a
controladora judicial; ignorá-las num arroubo voluntarista seria uma
temeridade, com consequências funestas para a autoridade decisora.
A imprescindibilidade de critérios científicos no contexto da Covid-19 é
expressa no artigo 3º, § 3º da Lei nº. 13.979/2020, ao preconizar que: “[a]s
medidas previstas neste artigo somente poderão ser determinadas com base em
evidências científicas e em análises sobre as informações estratégicas em saúde
[...]”. Por outras palavras, em tese, a Administração Pública pode até se
distanciar das recomendações da OMS no trato da Covid-19 [por exemplo,
intensidade do distanciamento social], mas só poderá fazê-lo mediante
apreciação técnica racionalmente fundamentada, por exemplo, explicitando que a
medida X ou Y não precisa ser implementada face à ausência de pessoas nos
grupos de risco, por ser uma zona geográfica distante e sem casos, etc. Essa
margem de apreciação administrativa é assegurada pela Lei nº. 13.979/2020 ao
disciplinar a dosagem de medidas de combate à doença, como restrição temporária
de entrada e saída do país, bem como locomoção interestadual e intermunicipal,
que só serão possíveis após prévia oitiva da Agência Nacional de Vigilância
Sanitária [art. 3º, VI].
Uma consequência prática do reconhecimento da natureza exortativa das
recomendações da OMS é a impor obstáculos ao controle judicial. Afora a questão
procedimental – necessidade de parecer técnico pela ANVISA, como visto acima –
o mérito da escolha dessa ou daquela medida sanitária, em regra, não conterá
parâmetros jurídicos facilmente contrastáveis. Isto é, ao invés de um ato
administrativo vinculado [simples aplicação de recomendações da OMS], tem-se um
ato administrativo discricionário [escolha técnica dentre várias elegíveis],
cujas perspectivas de controle judicial são bem mais acanhadas13.
Conclusão
Como visto, não é possível sustentar que as recomendações da OMS tenham efeitos vinculantes para os Estados Partes, aqui incluindo o Brasil. Porém, é completamente desaconselhável que as mesmas sejam ignoradas pelas autoridades, dada a deferência que os tribunais pátrios tem por aquela agência especializada. Por via transversa, acaba-se concedendo uma força quase vinculante às diretrizes da OMS, que só poderiam ser excepcionadas com base em sólidas razões. Em tempos de profunda crise, o gestor público deve adotar a postura mais conservadora possível quanto aos riscos, evitando que o decision-making seja contaminado por subjetivismos e critérios pseudocientíficos, sob pena de responsabilização pessoal.
Esta coluna é produzida com a colaboração dos programas de pós-graduação
em Direito do Brasil e destina-se a publicar materiais de divulgação de
pesquisas ou estudos relacionados à pandemia do Coronavírus (Covid-19).
1 Artigo 57 1.
As várias agências especializadas, criadas por acordos intergovernamentais e
com amplas responsabilidades internacionais, definidas em seus instrumentos
básicos, nos campos econômico, social, cultural, educacional, sanitário e
conexos, serão vinculadas às Nações Unidas, em conformidade com as disposições
do artigo 63. [...]
2 WORLD HEALTH ORGANIZATION. ICD-11
Implementation or Transition Guide. Disponível em: <https://icd.who.int/docs/ICD-11%20Implementation%20or%20Transition%20Guide_v105.pdf>. Acesso em: 05 abr. 2020.
3 WADHAMS, Nick; JACOBS, Jennifer. China
Concealed Extent of Virus Outbreak, U.S. Intelligence Says. Bloomberg.
Disponível em: < https://www.bloomberg.com/news/articles/2020-04-01/china-concealed-extent-of-virus-outbreak-u-s-intelligence-says>.
Acesso em 05 abril 2020.
4 WORLD HEALTH ORGANIZATION. WHO
Director-General's opening remarks at the media briefing on Covid-19. Disponível em: <https://www.who.int/dg/speeches/detail/who-director-general-s-opening-remarks-at-the-media-briefing-on-covid-19---11-march-2020>.
Acesso em: 05 abr. 2020.
5 WORLD HEALTH ORGANIZATION. Critical
preparedness, readiness and response actions for Covid-19. Disponível em:
< https://www.who.int/publications-detail/critical-preparedness-readiness-and-response-actions-for-covid-19>.
Acesso em: 05 abr. 2020.
6 Conferir:
<https://www.who.int/emergencies/diseases/novel-coronavirus-2019>.
Acesso em: 06 abr. 2020.
7 MAZZUOLI,
Valerio de Oliveira. As determinações da OMS são vinculantes ao Brasil? Disponível
em: <https://www.oab.org.br/noticia/58018/artigo-as-determinacoes-da-oms-sao-vinculantes-ao-brasil-porvalerio-de-oliveira-mazzuoli>.
Acesso em: 06 abr. 2020.
8 O outro tipo
de recomendação é a permanente, conceituada como “[...] uma orientação de
natureza não-vinculante emitida pela OMS consoante o Artigo 16, com referência
a riscos para a saúde pública específicos existentes, e relativa às medidas de
saúde apropriadas, de aplicação rotineira ou periódica, necessárias para
prevenir ou reduzir a propagação internacional de doenças e minimizar a
interferência com o tráfego internacional”.
9 BRASIL.
Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº. 4066,
Pleno. Relatora: Ministra Rosa Weber, j. 24/08/2017. Disponível em: <www.stf.jus.br>.
Acesso em: 06 abr. 2020.
10 BRASIL.
Tribunal Regional Federal da 5ª Região. Apelação Cível nº. 581655,
1ª Turma. Relator: Desembargador Federal Manoel Erhardt, j. 27/08/2015.
Disponível em: <www.trf5.jus.br>. Acesso em: 06 abr. 2020.
11 BRASIL.
Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº. 670422, Pleno.
Relator: Ministro Dias Toffoli, j. 15/08/2018. Disponível em: <www.stf.jus.br>.
Acesso em: 06 abr. 2020.
12 BRASIL.
Tribunal Regional Federal da 3ª Região. Apelação Cível nº. 0008253-87.2011.4.03.6105,
4ª Turma. Relator: Desembargador Federal Marcelo Mesquita Saraiva, j.
07/02/2020. Disponível em: <www.trf3.jus.br>. Acesso em: 06 abr. 2020.
13 BRASIL.
Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº. 1171688, 2ª
Turma. Relator: Ministro Mauro Campbell Marques, j. 01/06/2010; Recurso
Especial nº. 23878, 2ª Turma. Relator: Ministro Castro Meira, j.
23/02/2010. Disponível em: <www.stf.jus.br>. Acesso em: 06 abr. 2020.
0 comentários:
Postar um comentário