As
ichneumonidae da Previdência
Roberto
Campos (1995)
"A
esperança de que o governo possa fornecer a nós todos um bom padrão de vida...
e segurança contra o infortúnio, independentemente de nossos valores e
habilidades, tem sido um artigo de fé das democracias ocidentais em todo este
século. É agora um anacronismo fadado a desapontamentos. (James
Davidson, em "The Great Reckoning")
As
ichneumonidae são umas vespas que imobilizam lagartas com infecções
paralisantes, e depois põem nelas os seus ovos, os quais geram larvas que se
alimentam do corpo vivo que lhes é, assim, assegurado. É a situação da
Previdência Pública brasileira, consumida por dentro pelo corporativismo e pelo
parasitismo fisiológico.
Por ser
compulsoriamente estatal, a Previdência é antidemocrática, obrigando o cidadão
a confiar sua poupança a esse administrador catastrófico, o Estado. É também um
"absurdo atuarial", uma "fonte de injustiças sociais" e um
"megadesperdício econômico". Sob o nome pomposo de Seguridade Social,
a Constituição de 1988 misturou três coisas diferentes em sua natureza e fontes
de financiamento: a previdência, que deve ser financiada por contribuições
individuais; a assistência social aos desvalidos, que exige cobertura
orçamentária; e a saúde, que sob o aspecto preventivo é principalmente
responsabilidade governamental, podendo a medicina curativa ser partilhada com
o setor privado. Absurdos atuariais, injustiça social e desperdício econômico
são características também de centenas de regimes especiais financiados pela
União, Estados e municípios, falimentares em sua maioria.
É
lícito ao Estado compelir o cidadão a um esforço de poupança para que não se
torne voluntária e conscientemente um encargo para a sociedade. Mas ele não
deve ser obrigado a confiar sua poupança ao "pai terrível", se
preferir fundos privados de capitalização, que ofereçam serviços em regime
competitivo. O indivíduo é o melhor fiscal de sua poupança previdenciária, como
o faz com sua caderneta de poupança, podendo transferi-la para o operador mais
eficiente. Os partidários da previdência pública compulsória são tiranos
disfarçados de samaritanos...
O atual
sistema é também um "absurdo atuarial", vítima de uma dinâmica
perversa. Entre 1960 e 1994, a população cresceu 128% e o número de
beneficiários, 1.400%. Em virtude da universalização da cobertura, cerca de 40%
dos beneficiários nunca pagaram contribuição. Numa era de crescente expectância
de vida, quase dois terços dos aposentados têm menos de 54 anos. São atletas
residuais ou balzaqueanas aquém da menopausa... Temos 2,3 contribuintes por
beneficiário, quando seriam necessários quatro para viabilizar atuarialmente o
sistema. As mulheres costumam sobreviver aos maridos, mas podem aposentar-se
cinco anos antes.
Finalmente,
cometemos a originalidade de, no serviço público, dar aos aposentados
remuneração superior à dos ativos.
A
previdência pública faz justiça social às avessas. Os pobres financiam os de
melhor qualidade de vida. As contribuições afluem para uma vala comum, de onde
segmentos ativistas e politizados, como magistrados, congressistas e professores,
saqueiam aposentadorias especiais e múltiplas. No regime geral da previdência,
o valor médio do benefício rural é de um salário mínimo, subindo para 2,1
mínimos no setor urbano. Esses valores, no Judiciário e no Legislativo,
alcançam mais de 36 mínimos. A contribuição é compulsória até o teto de dez
salários mínimos. O resultado é que os pobres ficam escravizados à tirania do
burocrata ineficiente, pois não têm dinheiro para recorrer à previdência
complementar. Será justo um sistema em que as pessoas mais pobres, em 1993, se
aposentavam em média com 62 anos, enquanto os beneficiários de aposentadorias
especiais por tempo de serviço abandonavam o trabalho aos 53 anos? Para
sancionar tais distorções, os beneficiários transformam os "privilégios
extraídos" em "direitos adquiridos". Mas não há "garantias
onerosas" (coisa diferente dos direitos humanos básicos) inalteráveis face
à Constituição. Nem há imunidade à falência sistêmica pela inviabilização
atuarial.
A
previdência pública compulsória é também fator de desperdício econômico. Os
custos da máquina estatal são elevadíssimos (10% dos benefícios), as greves
frequentes, os serviços exasperantes. Mais importante ainda, não serve de
alavancagem para o desenvolvimento, ao contrário do que sucederia com os fundos
privados, obrigados a investimentos produtivos na economia para dar
rentabilidade ao segurado.
A
reforma previdenciária proposta pelo governo é menos uma reforma que um útil
remendo. Visa a viabilizar atuarialmente o atual sistema, corrigindo várias distorções
e injustiças. Mas não ataca dois problemas fundamentais _o caráter
antidemocrático da gestão estatal "compulsória" de recursos privados
e a necessidade de mobilização de poupança de longo prazo para a retomada do
crescimento. A desculpa para a compulsoriedade estatal é que o governo
exerceria uma função redistributiva. Mas na prática essa redistribuição não tem
favorecido os pobres e sim grupos de pressão politicamente organizados.
A
solução ideal seria a adoção do modelo chileno de privatização, ainda que em
caráter opcional, podendo os estatólatras optar pela previdência pública. Seria
uma mudança do eixo conceitual. A responsabilidade básica da provisão para o
futuro caberia ao cidadão, que para isso deixaria de pagar contribuições ao
governo. Este só teria três funções: fiscalizar os administradores dos fundos
de pensão privada; garantir o patrimônio dos segurados, em caso da falência das
entidades administradoras, cobrando destas para isso uma taxa de seguro de
risco; complementar a renda daqueles que, ao fim de sua vida laboral, não
alcançassem, pelos processos do mercado, o mínimo vital. A contribuição dos
empregadores se transformaria em aumento salarial para os empregados,
dando-lhes uma margem para suplementar o fundo de pensão com seguro saúde e
contra invalidez. Subproduto importante do sistema chileno foi a criação de um
"capitalismo do povo", pois os segurados se tornavam acionistas
vigilantes das empresas financiadas por
sua poupança previdenciária.
sua poupança previdenciária.
Uma
proposta intermediária entre a atual previdência pública e o modelo chileno foi
apresentada pelo deputado Eduardo Mascarenhas. Permite que o plano básico da
previdência social ofereça modalidades diferentes de cobertura previdenciária,
desde que os cálculos atuariais incluídos na Lei de Custeio e Benefícios sejam
consistentes. O contribuinte pagaria de acordo com o menu de benefícios
escolhido, podendo optar por contribuições menores com redução dos benefícios,
o que lhe deixaria margem para complementar sua renda com seguros privados. Em
favor dos optantes, o Tesouro emitiria certificados de poupança, monetizáveis
nas datas previstas na modalidade do seguro, mas que poderiam ser aplicados
também como moeda de privatização de estatais, substituindo-se o ativo
previdenciário por um ativo acionário.
Os dois
pontos de estrangulamento do desenvolvimento latino-americano são as periódicas
crises cambiais e a insuficiência da poupança doméstica. Os asiáticos nos
ensinaram que a orientação exportadora e a atração de investimentos diretos
permitem a superação do perigo cambial. Os chilenos nos ensinaram que a
privatização da previdência é o melhor instrumento para aumentar a poupança
interna e alavancar investimentos produtivos. Isso exigiria abandonarmos a
obsessão protecionista de substituição de importações, resultante do
"pessimismo exportador", e a ilusão do "Estado Benfeitor".
Essa entidade abstrata não existe. O que existe é o governo concreto, de
burocratas e políticos, que convivem num Zoo social, sujeitos a incursões
predatórias das ichneumonidae do corporativismo e do parasitismo fisiológico.
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