China move uma peça do xadrez. Quem vencerá a guerra das moedas?
11 de dezembro de 2019 Redação D.E. 0 Comments "globalismo", China, Fed, guerra econômica, moedas, Trump, Xi Jinping
Por
Gustavo Galvão
No
mês de outubro deste ano, a China anunciou mais um passo para a abertura
de seu mercado financeiro facilitando a aquisição de títulos de dívida pública
por estrangeiros. Antes mesmo de conhecer detalhes, alguns analistas, que
vaticinam a falência do dólar, já se apressaram a anunciar o fim da hegemonia
da moeda estadunidense. A realidade porém é mais complexa.
Ao
contrário desses analistas, as pessoas comuns normalmente veem as moedas,
especialmente as moedas internacionais, como entidades relativamente imutáveis.
Certamente, dentro do horizonte de uma vida humana, as moedas não mudam muito
de status em relação às outras. Normalmente, a história das moedas é muito mais
longa do que de um homem. Essa proposição não é válida para o Brasil. Um
brasileiro com mais 40 anos já conviveu com pelo menos 5 moedas. Mas há 25 anos
temos a mesma moeda.
Aspecto
importante em relação às moedas, e que não é estudado pela teoria econômica, é
a “força” de uma moeda. Qualquer cidadão sabe e afirma que o dólar, o euro, o
iene e a libra esterlina são moedas fortes. Outras, como o real, não são
consideradas fortes. Afinal a “força” de uma moeda é um atributo relativo. Uma
é forte em relação a outra.
Geralmente,
os cidadãos dos países de moeda forte se orgulham disso. Talvez algo importante
passe despercebido: o Poder Estatal e as elites dirigentes e empresariais dos
países de moeda forte lutam para que suas moedas sejam cada vez mais fortes.
Isso é um grande valor para eles, porque o poder econômico e, portanto,
político do Estado, de suas classes dirigentes e de todos que possuem ativos,
riqueza, denominados nessa moeda é tão maior quando mais forte ela seja.
Apesar
da importância disso tudo, não há uma definição precisa e muito menos uma
teoria sobre o que seja e, principalmente, o que determina a “força” de uma
moeda. Em termos simplificados a “força” de uma moeda está relacionada com a
perspectiva de preservação do valor dessa moeda em relação às outras e às
mercadorias em geral. Ou seja, espera-se dela baixo risco de desvalorização
cambial e de inflação.
Feita
essa introdução, voltemos a nossa pergunta original: “Quem vencerá a guerra das
moedas?” Talvez antes tenhamos que responder se realmente existe uma guerra de
moedas.
Como
assinalamos, os Estados Nacionais e suas elites dirigentes e empresariais sempre
lutam por manter o valor elevado de sua moeda em relação a outras. Isso já
ajudaria a entender que, em algum nível, sempre há algum tipo de guerra de
moedas.
Na
prática, porém, passam-se décadas sem que haja disputas de moedas, porque
normalmente é muito difícil o mundo conviver em paz quando há duas moedas com
importância semelhante. Na maior parte do tempo, convivemos com uma moeda
hegemônica que corre nenhum risco de ser desbancada por outra; portanto, a
guerra de moedas é um fenômeno que acontece poucas vezes em cada século.
Usualmente uma vez apenas, e quase sempre é acompanhada por guerras armadas.
Quando
a liderança de econômica de uma potência hegemônica é desafiada, costuma também
ser desafiada a liderança de sua moeda. Não há dúvidas de que hoje estamos em
meio a uma nova guerra econômica. Não apenas entre EUA e China, mas participa
também a União Europeia. Essas três potências têm as moedas mais fortes do
planeta, que irão disputar a hegemonia na próxima década. Qual ficará mais
forte? O dólar será superado pelo iuan ou pelo euro?
Para
tentar responder a essas perguntas, temos que explicar que fatores determinam a
“força” de uma moeda.
Antes
de detalhar esse assunto, temos que ressaltar que, em uma situação de
incontestável poder militar, a prevalecente hegemonia monetária do país
hegemônico não pode ser contestada de forma eficaz, porque o país militarmente
mais forte pode impor politicamente condições econômicas ao país militarmente
mais fraco, que impedirão que a moeda deste supere a do país mais forte. Apesar
disso, a supremacia militar não é suficiente para tornar uma moeda hegemônica.
Há condições econômicas que precisam ser satisfeitas.
Essas
condições são as mesmas que determinam a vantagem de uma moeda sobre a outra,
em uma situação em que dois países estão em situação de equilíbrio militar,
como a que ocorre hoje, pela primeira vez desde 1991. As condições são essas:
1)
fluxo comercial, de serviços e de rendas altamente superavitário. Esse caso é o
mais geral e sustentável a longo prazo. Mas ele é mediado ou relativizado a
curto e médio prazo pelas condições 2, 3 e 4, respectivamente, em caso de
bonança, normalidade e crise financeira;
2)
em situações de euforia financeira, uma grande diferença de valorização e
atração de investimentos entre os países nos mercados acionário, imobiliário e
ou de dívida corporativa pode fazer a diferença para determinar a relação de
“força” entre as moedas fortes, no curto e médio prazo. Esse fenômeno
contribuiu para sustentar o dólar forte na última década. Mas parece estar se
esgotando;
3)
na ausência de euforia financeira, uma relação favorável de risco-retorno da
dívida pública pode ser importante para determinar a “força” relativa entre as
moedas fortes. É nesse ponto que alguns analistas veem a abertura financeira da
dívida pública chinesa como uma ameaça ao dólar no curto prazo, caso os
mercados chineses de dívida sejam abertos para investimento estrangeiro.
Essa
hipótese decorre do fato, na situação atual, da relação risco-retorno da dívida
pública chinesa ser extremamente favorável, porque os juros lá são mais altos
e, além disso, há perspectiva de valorização da moeda chinesa a médio e longo
prazo. Em razão disso, se os chineses realmente abrirem o mercado de dívida
pública para o estrangeiro, haverá, sim, uma incrível enxurrada de capital para
a China.
Mas
isso não resolve a questão, ou seja, essa muito provável enxurrada de capital
para a China, para aplicação em dívida pública, pode ameaçar o dólar a curto ou
médio prazo para os EUA?
A
resposta é não. Os chineses são altamente superavitários em seu balanço de
pagamento com o exterior há décadas, e isso nunca ameaçou o dólar. Inclusive, o
Governo Trump teria interesse que houvesse uma desvalorização do dólar em
relação à moeda chinesa para que aumentasse a competitividade da indústria
estadunidense.
De
fato, desvalorizações circunstanciais das moedas não afetam a força de uma
moeda. E para reforçar nosso argumento, a orientação da política de
desenvolvimento industrial chinesa faria o possível para impedir que houvesse
qualquer desvalorização do dólar em relação a sua moeda, por isso que compram
tantos dólares há décadas.
Em
resumo, o dólar não se desvaloriza, em primeiro lugar, porque a China não quer
que isso aconteça. Aliás, nem a China nem ninguém. É por isso que os europeus
colocaram suas taxas de juros a taxas inéditas abaixo de zero.
Os
analistas que torcem para que dólar se desvalorize precisam explicar porque e
quando algum país vai desejar que isso aconteça. Mas, como argumento didático,
para explicar porque o dólar é tão forte, vamos supor que os chineses no futuro
próximo desejem valorizar o iuan em relação ao dólar, ou melhor, valorizar mais
do que os EUA desejariam, chegando até mesmo a causar inflação nos EUA.
Nos
anos 70, aconteceu o fenômeno da combinação da valorização do marco alemão e do
iene, acrescidas pela valorização de commodities puxadas pelo petróleo. Esses
fatos contribuíram para o aumento da inflação nos EUA. Mas o dólar não foi
efetivamente ameaçado como moeda hegemônica, porque, quando a inflação atingiu
níveis mais elevados, o banco central dos Estados Unidos da América (EUA), o
Fed, deu um grande aumento na taxa de juros, o que rapidamente criou uma crise
econômica global e valorizou o dólar em relação a todas as outras moedas e
commodities.
Os
EUA podem fazer isso, novamente, hoje e daria certo outra vez, ao menos no
curto prazo. Para entender isso, temos que compreender o que determina a força
relativa entre as moedas em situações de crise financeira.
4)
em situação de crise financeira, relação de “força” entre duas moedas fortes
depende da quantidade de dívida total no mundo denominada na sua moeda. Nesse
indicador, o dólar ganha de lavada de qualquer outra moeda. Em uma situação de
crise financeira, causada por uma elevação de juros pelo Fed, o dólar vai se valorizar
porque todo mundo vai ter que correr atrás da moeda necessária para se pagar
suas dívidas, que estão na maioria denominadas em dólar. Foi assim que os
norte-americanos retomaram sua hegemonia inconteste nos anos 80.
O
problema deles é que hoje o maior concorrente econômico não é um protetorado
militar, como são o Japão e a Alemanha. Portanto, o problema dos EUA não seria
manter o dólar forte provocando crise financeira no mundo, o problema seria
manter a competitividade da sua indústria após a valorização do dólar
decorrente da crise financeira sem a colaboração da China e Europa.
Ou
seja, o problema dos EUA não seria manter o dólar forte através de produção de
crise, o problema seria como sair da crise mantendo uma indústria forte e ao
mesmo tempo uma estabilidade cooperativa no comércio internacional, como tanto
deseja o sistema financeiro ocidental.
A
saída da crise econômica do início dos anos 80 causada pelo aumento dos juros
norte-americanos foi feita através do Acordo de Plaza, em que o Japão e a
Alemanha aceitaram passivamente cooperar para desvalorizar o dólar mantendo
taxas de juros superiores às estadunidenses.
Na
crise de 2008, foi criado um novo grupo, com os 20 mais importantes economias
do mundo, o G-20, para coordenar a cooperação financeira e comercial para
ajudar os EUA e a Europa a saírem da crise financeira.
Haverá
clima e disposição, na China e na Europa principalmente, para essa política
novamente, caso o mundo entre em uma nova crise financeira iniciada nos EUA?
Possivelmente sim, mas a custos provavelmente mais altos, diplomaticamente
entendido.
Concluindo:
1)
não há risco de colapso do dólar de imediato, mesmo com um superinfluxo de
capital para a China para aproveitar a ótima relação custo-benefício dos ativos
de dívida pública chinesa;
2)
isso poderia ser um problema apenas se os chineses pararem de comprar os
dólares excedentes a uma taxa de câmbio relativamente fixa como fazem hoje;
3)
e só aconteceria em razão de uma possível decisão chinesa de abandonar sua
indústria barata por deixar o iuan valorizar;
4)
a médio prazo, a inflação causada por essa decisão chinesa poderia causar
inflação indesejável nos EUA;
5)
se acontecer, basta aos norte-americanos puxarem os juros e colocarem a
economia mundial em crise, para controlarem a inflação e restabelecerem a
prevalência do dólar;
6)
esse movimento pode trazer dor aos EUA, mas também poderia causar dor à China.
7)
A comunhão de interesses na solução da crise pode levar a China a cooperar
novamente com os EUA para saída da crise, mantendo a prevalência do dólar como
moeda hegemônica, como já aconteceu duas vezes nos últimos 40 anos (a primeira
vez com Japão e Alemanha).
Quer
dizer então que é impossível superar a hegemonia do dólar? Não. Há situações em
que isso pode acontecer.
O
dólar pode ser superado por exemplo de uma forma similar àquela que aconteceu
com a libra esterlina. Se os chineses ou europeus, após a crise financeira, em
vez de manterem juros acima do Ocidente, mantiverem abaixo e tomarem o mercado
de empréstimos internacionais dos bancos estadunidenses, poderá, com o tempo,
superar a dólar como principalmente moeda indexando a dívida externa
internacional.
Nesse
caso, quando houver uma nova crise financeira internacional, os capitais não
vão mais fugir para o dólar, mas sim para o iuan ou o euro. Ou seja, o que
ameaça o dólar não é os ocidentais comprarem dívida chinesa, como sugerem
alguns analistas, mas o ocidente tomar emprestado em iuan.
Porém,
isso não significa que a abertura do mercado chinês de dívida não sejam um
passo importante nessa direção. Provavelmente é, porque se os chineses abrirem
seu mercado de dívida pública e não desejarem acumular ainda mais reservas em
dólar de baixa remuneração, terão que reduzir suas taxas de juros internas,
estimulando seus bancos internos a pedirem ao governo mais liberdade para
emprestarem ao exterior.
Mas
todo esse processo demoraria muitos anos, a menos que aconteça um fenômeno de
grande impacto na economia mundial que leve a China a realizar imensos volumes
de empréstimos em iuan para países importantes.
No
caso da ascensão do dólar frente à libra, esse fenômeno foi a Primeira Guerra
Mundial. Por enquanto, não há um fenômeno semelhante em vista, portanto o dólar
deve continuar liderando, ainda por um bom tempo.
Gustavo
Galvão, Doutor em Economia, autor de As
21 lições das Finanças Funcionais e da Teoria do Dinheiro Moderno (MMT).
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