O FARAÓ-DO-CERRADO
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07:51
DO SEMANÁRIO AGRISSÊNIOR
O FARAÓ–DO–CERRADO
Amauri Rodrigues, 90, o Von Steisloff
De tanto ver crescer as mansões de Brasília,
de tanto ver agigantar-se o número das
piscinas nessas vivendas e de tanto ver
multiplicarem-se as churrasqueiras, o
observador chega a desanimar-se diante da
própria insignificância e rir-se da sua pobreza
pessoal. O atrevido pobretão imagina –
filosofando –, que vive entre uma multidão de
faraós que habitam por ali. São os faraós de
inusitadas condições, pois que, sobrevivem
muito antes de morrer em suas sonhadas
pirâmides maiores ou menores.
Naquele longo e humilde trajeto diário, o
homem sente-se, às vezes, como um pária
social. Não é para menos: a visão daquelas
mansões dá para despertar um sentimento de
inferioridade no pobre carroceiro no
interminável vaivém catando restos de papel
no bairro chique. Às vezes feliz, às vezes
jubiloso, na sua resignação com o “Destino
que Deus lhe deu”. “Ora!” – imagina com
otimismo compensatório – “Não tenho nada
com que mepreocupar!”. Por certo o pobre
pária do século XXI refere-se às angústias
dos promitentes compradores das Mercedes-
Benz, das Bentley ou BMW. Os ostensivos e
confortáveis desperdícios paralisados nas
garagens tal como tentadores bibelôs nas
vitrines de luxo. Será o medo da perda
material que ronda os poderosos faraós do
Lago Sul ou do Lago Norte da capital federal?
Mas o pária continua com sua mente
bipolarizante: “Esses carrões de 200 cavalos
estão limitados;não podem mesmo
ultrapassar dos 70 quilômetros e eu, com o
matungo emprestado, vou ganhando a minha
boa vida livre; bem devagar e sem os receios
dos faraós. Não tenho qualquer medo porque,
tal como uma lesma, na lentidão, não provoco
a inveja!”.
É isso mesmo, as mansões dos lagos sul e
norte são, na fértil imaginação do catador- de-
papel, como formidáveis pirâmides erigidas na
dura realidade nos limites máximos dos
financiamentos bancários, vigiadas nos
rigores das ameaçadoras cartas de hipotecas.
Os horizontes financeiros regulam a imponência,
a metragem, a altura e o conforto das pirâmides.
Mas todas têm de ter obrigatoriamente uma
churrasqueira e, pelo menos, uma piscininha.
Sauna? Algumas têm, mesmo sem uso, para não
ficar por baixo do faraó- vizinho É costume
manter-se uma espécie de competição e
igualdade de status com a vizinhança das outras
pirâmides faraônicas.
Uma sinalização típica do poder do faraó-do-
cerrado é a frota de carros importados ou
mesmo nacionais, mas do ano. As garagens,
propositalmente devassadas, exibem, sem
pudor, através dos portões automáticos, as
lustrosas máquinas maravilhosas. Esses
locais destinados às dúzias de carrões são,
vergonhosamente, bem maiores que os
tugúrios.
Aquelas casas miseráveis de papelão dos
incômodos dos vizinhos Os párias-vizinhos
sem bens ou sem as nobrezas e origens
misteriosas desses faraós sem conta que
dominam o cerrado devastado. Faraó-do-
Cerrado é aquele ricaço dos papeluchos
bancários, meio escondido; propositalmente
quase anônimo, por trás das sebes sempre
verdes e protetoras.
“Afinal”– deve imaginar o faraó-do-cerrado
–Nessa merda de deserto tenho que marcar
minha presença e passagem por Brasília”.
E lá vai, todo dia, o catador-pária olhando,
discreto para as centenas de hectolitros das
azuladas águas das hiper-piscinas
ladrilhadas. Ele não consegue conter a
comparação com as suas escassas latinhas
do mesmo líquido juntado para o gasto da
família amontoada no seu barraco quase ao
lado da imponente pirâmide.
“Ô vidinha infeliz!” – deveria estar maldizendo
o pária – “Cadê a Justiça De
Deus?!”.Imprecaria o pária?! Nada disso! O
pária, não exibe o passado, não sabe nem o
que seja um currículo de vida e não tem os
temores do futuro. Nem mesmo a mísera
carroça mambembe da caixotaria descartada
lhe pertence. Outro pária-catador passou-lhe,
por empréstimo forçado, aquele veículo e
junto o matungo de tração. O compadre –
também pária – estava detido pela Polícia de
Brasília por ter sido flagrado circulado com o
citado “veículo” antiestético em local proibido
do Plano Piloto do Distrito Federal.
“Um homem sem bens nada tem a
temer”.Máxima tirada filosófica tanto deste
herói em foco como de todos os párias
conscientes e assumidos.
Aliás, por falar em temer, o que mais teme um
faraó-do-cerrado não é propriamente a morte.
Por serem, na mais das vezes,
profundamente religiosos são, por convicção
filosófica, crente da gratificação de Deus.
Acham que levarão para a eternidade as
indulgências plenárias.Graças alcançadas
porque doaram migalhas; aquelas
incomodativas sobras que abarrotavam por
gastanças: as velharias dos tênis, das roupas
em trapos e outras tralhas que entupiam os
quartos de despejos ou as preciosas vagas
das garagens ladrilhadas.
Na verdade, o que teme o faraó-fajuto são as
consequências da pós-morte: a briga de foice
da parentela famélica digladiando ansiosa
pós-velório do de cujus pranteado.Os seus
bens transformados em butim. Todos os
juntados pelo faraó falecido. Preocupa-lhe e
tira- lhe o sono, ainda em vida, os problemas
do dispendioso inventário a seguir quando for
transposto para condição ex.
Ah! Os espertíssimos advogados a garimpar-
lhe a história, até íntima, na busca dos direitos
de todos os sucessores visíveis e ignotos, até
mesmo do contra-parente parasita! Isso sim
causa temor em vida ao faraó-do-cerrado.
Atormenta-lhe a aparente falsa tranquilidade
que rodeia os seus dias e noites em festas e
comemorações caras e infindáveis. Se bem
que o faraó-do-cerrado tudo pode
proporcionar, ainda em vida, para sua enorme
prole. Família bem planejada, mas
desregrada no mundo das exigências. São
felizes enquanto tudo podem e tudo têm.
Às madrugadas, quando o faraó volta
costumeiramente bêbado para sua
confortabilíssima pirâmide, encontra-a vazia,
silenciosa, carente de aconchego sincero.
Onde estão os seus? Será que vagam pela
noite de Brasília em busca de outros prazeres
maiores que os disponíveis na pirâmide
zelosamente planejada? Onde estão seus
filhos, os herdeiros dos bens materiais
amealhados?
Pobre faraó-do-cerrado! Periga até
esborrachar-se enfartado nos litros do
generoso wiskey. Ninguém lhe poderá
socorrer. Nem a circunstacial e bela esposa,
chique e perfumada lhe espera para um
carinho sincero de boas-vindas. Outrora era
tão diferente!
Agora? Ora, agora ela também dorme
encharcada no azedume de outros porres.
Curte um significativo ronco noturno para não
testemunhar e nem ceder às abordagens noturnas
do repugnante faraó alcoolizado sem amor.
Essa imaginação da vida depravada típica do
faraó-do-cerrado povoa a mente do pária que
passa, em silêncio, sempre por perto do
portão de fecho eletrônico. Quanta diferença
entre o pobre carroceiro e o faraó! Aquele não
necessita dissimular para os seus iguais:
gente simples sem a fortuna do Destino não
carece nem mentir. Este, o faraó, pobre de
amizades, vive de mentiras por necessidade
social. Por conveniência busca ser sedutor,
fascinar e, às vezes, diz SIM quando quer
dizer NÃO. E – coitado! –, diz NÃO quando a
vontade é dizer SIM. Coisas de gente fina da
sociedade hipócrita.
O faraó-do-cerrado não vive dilemas morais.
Está acima das convenções das regras
inventadas pelos moralistas. Quando
ultrapassa limites, mesmo graves, acode-lhe
um batalhão de causídicos eficientes e ávidos
nas justificativas do procedimento anti-social.
O autêntico faraó-do-cerrado afoga-se, quase
naufragante, no trabalho a que se dedica por
inteiro desde as onze da manhã varando, na
mais das vezes, até madrugada. O antigo
calor do lar agora vazio, não lhe atrai mais
cedo. Ninguém lhe espera. Quando entra na
segura e sólida pirâmide solitária, já vem farto
dos bons restaurantes das rodadas de
compromissos dos iguais da sua corte: os
outros assemelhados faraós-do-cerrado.
Ah!Que diferença de sorte e de vida! O pária
levanta antes do sol para não perder na
competição diária. Os seus pares – outros
párias – estarão todos muito cedo, ainda na
escuridão, chafurdando, respeitosamente, as
latas dos lixos piramidais e os contêineres
ministeriais na busca do papelão e dos restos
preciosos de papelmal baratado.
Pela noite volta o pária cansado para os
braços da amorosa companheira que o
espera para juntos, sorver com imenso
prazer, um bule inteiro de café de eflúvios
contagiantes! Naquela simplicidade e
aconchego do alegre barraco, confessam e
podem praticar o gratificante amor carnal de
todas as noites. Este pobre homem feliz agora
pode dormir quase bem ao lado de faraó
desgraçadamente rico, infeliz, trancado e
seguro, mas insone e sem ninguém na bela
pirâmide soturna.
A suposta diferença dos seres humanos que
dormem quase ao lado,reside nos seus
potenciais de sonhos. O faraó-do-cerrado vive
e sustenta o comportamento onírico pelos
padrões da desastrada economia ocidental.
Ele quer consumir desbragadamente. Às
vezes na sua mania de exibição, acelera com
o pé no fundo os doze cilindros da Mercedes
saturando, sem piedade ou pudor ecológico, o
ar, queimando a gasolina de cem octanas! O
seu pretenso gigantismo econômico não
passa, por fim, de um miserável caçapo: os
compromissos, as dívidas, o apego aos bens
ao peso de ouro torna sua existência
acachapante.
Veja que grandiosidade de contraste!
Enquanto o faraó acelera o carrão de 200
cavalos com violência irracional, o pária
compraz – às noites – em jogar um balde de
refrescante água no lombo suado do valioso
matungo. Veja que ironia: um único cavalo
que lhe garante o pão de cada dia! O pária,
em contrapartida, na sua modéstia do viver,
não depreda os parcos recursos ao seu
dispor. O seu trabalho honrado é apenas de
busca e gratificação para um sustento mais
que adequado ao Ser Humano. Sonha,
quando muito na extravagância, em um
domingo ensolarado banhar-se, sem gastos
no, Lago Paranoá. É, por isso, o contraponto
do “inteligente” e portentoso vizinho com a
sua economia ocidental
moderna, avassaladora e escravizadora
tecnologia ilimitada e sem rumo. O pária,
talvez
sem dar-se conta, desfruta uma existência
sábia nos padrões da economia budista...
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