GAZETA DO POVO
Vida e Cidadania
Políticas e projeções
Mundo chegará a 10 bi de habitantes? Qual o papel das
famílias na “era” do declínio populacional
Por
Isabelle Barone
Brasília
[28/07/2020] [18:18]
Imagem ilustrativa.| Foto: Unsplash
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A "era" do declínio populacional pode ocorrer mais
cedo do que o esperado. É o que prevê uma nova análise publicada na revista The
Lancet, que destoa das projeções da ONU de que a população mundial chegaria a
11 bilhões até o fim do século. O estudo, em contrapartida, sugere que o mundo
nem mesmo alcançará a cifra de 10 bilhões de pessoas; já em 2064 alcançaríamos
o pico de 9.73 bi. A queda demográfica se daria, inclusive, em países onde as
taxas de fecundidade atualmente são altas.
Em 2064, o Brasil alcançaria no máximo 235 milhões de
habitantes, afirma o estudo, e cairia para 165 milhões até 2100. Isso também
destoa das projeções do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE),
cujo prognóstico é de que o Brasil chegue a um pico de 228 milhões de
habitantes em 2048.
Os pressupostos são vistos como bastante ousados por muitos
pesquisadores. "Quanto maior o horizonte de uma projeção e quanto mais
parâmetros são colocados nos pressupostos, como ocorre no estudo, mais
incertezas se tem. Pois são parâmetros que não se pode controlar", afirma
Leila Ervatti, pesquisadora da Gerência de Estudos e Análise da Dinâmica
Demográfica do IBGE.
Em que pese as chances de que os números exatos não se
cumpram, demógrafos afirmam com alto grau de segurança acerca da tendência à
qual o mundo está fadado: a queda global das taxas de fecundidade. O declínio
populacional está fortemente associado a maior participação da mulher no
mercado de trabalho, maior acesso à escolaridade e à contracepção.
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Por um lado, tal queda demográfica é vista com
"entusiasmo" por parte dos especialistas que temem a tensão
relacionada aos recursos naturais. O declínio populacional, portanto, traria
boas notícia para o meio ambiente, com menos poluição e emissão de carbono.
Eles também veem o crescimento da população como um “problema”, responsável
pela fome, pobreza e desequilíbrio mundial.
Uma nova dinâmica na qual a população é menor e com uma
estrutura etária envelhecida, contudo, como devemos ser nas próximas décadas,
trará enormes desafios econômicos e sociais, com potencias impactos
preocupantes. A tendência é de queda no crescimento econômico e aumento do peso
sobre as contas públicas, à medida em que as sociedades tiverem de lidar com
menos trabalhadores e contribuintes. Experiências de países que já enfrentaram
o dilema, como os europeus, revelam que o sistema social não consegue
"pagar a conta" da longevidade. Há, além disso, questões de ordem
sociais como a lacuna intergeracional.
No Brasil, entre 1990 e 2012, o número de beneficiários da
seguridade social teve aumento 24% maior do que o crescimento da população de
60 anos ou mais, revelam dados do IBGE. Nos próximos quarenta anos, o total de
benefícios pode ser multiplicado por 3,3 vezes.
De políticas liberais de imigração à proibição do aborto,
estudiosos se debruçam sobre possíveis soluções para contornar os dilemas
demográficos. O futuro dependerá das estratégias que serão implementadas e,
nesse sentido, especialistas apontam que o melhor caminho é reconhecer o papel
das famílias, consideradas a base da sociedade pela Constituição Federal, como
agentes sociais e, portanto, tê-las no centro da agenda das políticas públicas.
Equilíbrio trabalho-família
A fim de que uma geração seja substituída sem que haja declínio
populacional, é necessário alcançar uma taxa de reposição de 2,1 filhos por
mulher. Isso é, duas crianças substituem os pais e a fração 0,1 é necessária
para compensar indivíduos que morrem antes da idade reprodutiva.
No Brasil, no entanto, a atual taxa de fecundidade é de 1,72
filho por mulher - cifra que deve dificultar o restabelecimento demográfico.
"No Brasil, temos observado a queda da fecundidade há muito tempo, desde a
década de 60", afirma Leila. "Alguns estados que já estavam com
fecundidade muito baixa, como no Sul e Sudeste, deram uma pequena
recuperada".
Segundo especialistas, esse cenário se deve também, em
especial, a um sistema social no qual a maternidade acarreta penalidades à
carreira profissional das mulheres, promovendo o desequilíbrio
trabalho-família.
"O importante, na minha opinião, é perceber que a
sociedade de hoje criou um sistema social no qual é muito difícil ter
filhos", afirma Ignacio Socias, diretor na International Federation for
Family Development (IFFD), que possui status consultivo na ONU.
Ângela Gandra, secretária nacional da Família no Ministério
da Mulher, da Família e de Direitos Humanos, também aponta para essa
conjuntura. "Infelizmente, a maternidade hoje, para nós, não é um bem. A
maternidade sofre bullying. Se uma mulher tem filho logo após casar, perguntam
a ela o que aconteceu de errado. Se outra mulher engravida do terceiro filho,
perguntam se ela ficou louca, se não tinha o que fazer", diz.
Para a secretária, é preciso dar espaço novamente à cultura da
maternidade. "Quando se sofre bullying e se vive em uma sociedade
utilitarista, com certeza não haverá desejo por ter filhos. Mas é preciso
pensar nos filhos como um bem, uma riqueza social, econômica e cultural. É uma
consequência natural do amor humano. A sociedade civil só existe porque existe
a família. É uma total inversão de valores quando o ser humano evita o que lhe
seria mais próspero".
Como mostrou a Gazeta do Povo, no Brasil, mulheres com
filhos tendem a ganhar, em média, R$ 555 a menos do que as que não são mães.
"Casais jovens são forçados a gastar muito tempo em
educação, consolidação profissional e integração social. Estudos sucessivos da
OCDE, por exemplo, mostram que a diferença entre a fertilidade desejada e a
fertilidade real é um fato: os jovens gostariam de ter mais filhos do que têm,
mas muitas vezes não têm tempo e recursos para realizar esse direito",
afirma Socias.
Em resolução, a ONU aponta o caminho: políticas de
equilíbrio trabalho-família, que forneçam subsídios capazes de promover um
ambiente favorável a mulheres que desejem ter filhos e estar no mercado de
trabalho ao mesmo tempo.
Por exemplo, assegurar licenças maternidade, paternidade ou
parental, sem prejuízo de emprego ou salário. No Congresso Nacional tramitam ao
menos seis propostas que tratam do tema. Um dos impasses associados à medida,
contudo, são os dispêndios que podem ser gerados aos empregadores.
"Em geral, são políticas que tornam o mercado de
trabalho mais flexível, para que mães e pais possam desfrutar da licença
parental quando tiverem filhos, e depois voltarem a um trabalho que não incorre
em penalidades por ter sido mães e pais", afirma Socias. "Nas
circunstâncias atuais, ter um filho não deve ser financeiramente prejudicial,
uma desvantagem profissional ou discriminação social. A maioria dessas crianças
será responsável no futuro pelos cidadãos, e toda a sociedade se beneficiará,
não apenas seus pais ou familiares".
Permitir aos pais modalidades de trabalho flexíveis, como o
teletrabalho, acentuado pela pandemia do novo coronavírus, é outro entre os
fatores indicados pela ONU para a promoção do equilíbrio trabalho-família. Além
disso, o órgão incentiva estados-membros a promoverem iniciativas que favoreçam
à equidade das responsabilidades do lar, nas tarefas nao remuneradas.
Relatório da Comissão de Seguridade Social e Família da
Câmara dos Deputados, de 2019, revela que "há uma disparidade relevante no
tempo gasto nas tarefas de cuidado não-remuneradas no ambiente doméstico, entre
homens e mulheres: no Brasil, as mulheres dedicam em média o dobro de tempo que
os homens nessas atividades".
"É necessário terminar com a aprovação social do absenteísmo
do homem na família: criar os filhos deve ser uma tarefa conjunta de pais e
mães, entre outras coisas, porque somente assim uma educação abrangente pode se
tornar realidade", destaca Ignacio Socias, do IFFD.
À vista disso, a Secretaria Nacional da Família tem apostado
em políticas que incentivem empresas a serem "familiarmente
responsáveis". No último ano, criou o programa Selo Empresa Amiga da
Família, cuja proposta é "fomentar e reconhecer a adoção de práticas
organizacionais de equilíbrio entre trabalho e família pelas empresas
brasileiras, tanto privadas quanto públicas". São levadas em conta boas
práticas de licença-parental, flexibilidade de horário, estrutura de trabalho
favorável às mães (salas de amamentação, por exemplo).
Também nesse sentido, o governo, no âmbito do Programa
Município Amigo da Família, premiará experiências exitosas "na
implementação de políticas familiares nos municípios por meio de uma
certificação".
"Incentivar a implementação de políticas públicas que
tenham como foco a família, orientadas a favorecer as relações familiares,
visando o fortalecimento de vínculos conjugais e intergeracionais, reconhecendo
que os bens relacionais e o capital social familiar, gerados no interior das
relações de plena reciprocidade entre os sexos e entre as gerações, merecem
proteção, à medida que tornam os indivíduos pessoas humanas e capazes de
assumir papeis sociais e, consequentemente, estão na origem de uma convivência
social mais justa e solidária", propõe.
Outras políticas podem ser tomadas no âmbito fiscal, com o
intuito de proteção de renda das famílias.
Lacuna intergeracional e solidariedade
Países tendem a pensar, em um primeiro momento, nos desafios
que uma estrutura etária predominantemente idosa traz à realidade econômica de
uma nação. Mas problemas sociais como a lacuna intergeracional têm atraído cada
vez mais a atenção de especialistas.
"Dentro desses gaps, estão faltando jovens. O país vai
envelhecendo e as poucas crianças que vão nascendo acabam tendo uma interação
social deficitária", afirma Ângela Gandra. "Há, nesse sentido, um
crescimento pouco saudável. Chega uma hora que pesam tanto os mais velhos que a
sociedade prefere que eles morram, ou os coloca no asilo, pois não há
preparação social solidária pra isso".
Políticas solidárias adotadas por países como a Itália, cuja
estrutura etária é superenvelhecida, demonstraram efeito, sobretudo, durante a
pandemia. O país apostou em facilitar a moradia de jovens em condomínios desde
que eles promovam interação intergeracional com idosos que residem no local.
"Uma grande lição desses tempos é que, como já estava
sendo anunciado nos países do primeiro mundo, negligenciar as tarefas de cuidar
da família inclui pessoas que nos deram tudo o que temos. É necessário
recuperar o vínculo intergeracional e encontrar maneiras práticas de demonstrar
que toda a vida humana é igualmente importante", lembra Socias.
Meio ambiente e migração
Políticas mais liberais de migração também são apontadas
como uma das chaves para lidar com o declínio populacional iminente. No
relatório, os pesquisadores de Washington afirmam que países que adotarem
medidas dessa natureza devem conseguir manter sua força de trabalho.
São medidas que podem contribuir temporariamente, mas não
são uma solução a longo prazo, uma vez que o declínio no número da população
acabará se manifestando e outros desafios associados à migração devem surgir.
Para Ângela Gandra, "ainda que a imigração seja um
direito humano, uma das vertentes que é preciso pensar é a identidade, em
cultivar as tradições. A extinção de um povo por não ter filhos é falta de
riqueza cultural para o mundo, de diversidade cultural".
Questões de ordem ambiental, ainda para a secretária,
deveriam ser valorizadas em segundo plano. "Acredito muito mais no poder
criativo de cada ser humano do que na preservação de algo que talvez ninguém vá
poder usufruir. Não adianta pensarmos em um planeta do qual vamos usufruir
melhor se não nos dermos bem, entre seres humanos. Grande parte da problemática
do mundo é o relacionamento humano e, se não estivermos abertos às relações
intergeracionais, não teremos um planeta bom", afirma.
"O 'material' está num grau do 'grau de ser' muito
menor do que um ser humano - que é criativo, é racional. Se para preservar um
planeta eu evito seres humanos, isso me parece realmente falta de hierarquia
filosófica antropológica. Se faço isso, tiro o próprio criador da
sustentabilidade, que é o ser humano. Onde encontraremos esforço para
solucionar problemas humanos? Não podemos inverter nossa própria hierarquia do
grau de ser, isso terá um enorme impacto social antropológico"
Nas palavras de Socias, é "egoísmo" pensar que, se
formos uma população menor, viveremos em um planeta melhor. "Especialmente
porque a experiência nos diz que o que realmente melhora nossa condição é usar
os recursos de maneira inteligente", afirma Socias.
"É preciso rever nossos valores. A Covid-19 está nos
fazendo ver o valor do ser humano, o valor de um familiar que não podemos ver,
de uma vida ceifada. Vimos que, de repente, toda a riqueza que temos é
encerrada dentro de casa. Essa discussão malthusiana sobre planeta me parece
medo de ter que ajudar o próximo, de ser solidário. Temos que criar uma nova
cultura, de celebrar a vida, a maternidade, e mais o ser humano do que bens
materiais. É preciso voltar a valorizar a vida", conclui Ângela.
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