06/04/2018
O Supremo Tribunal Federal, por um triz, acaba de
tirar o Brasil de uma descida perigosa, talvez fatal, em direção à desordem
imediata. Já não existe aqui há muito tempo um regime que preencha boa parte,
talvez a maioria, dos requisitos necessários para merecer a classificação de
“democracia”. Mas se for feito um pouco mais de esforço para piorar as
coisas, todos podem ter uma certeza: a democracia brasileira,
mesmo essa droga de democracia que ainda há por aí, vai para o espaço. O
ex-presidente Lula, com o apoio em peso de tudo o que existe de mais potente na
corrupção brasileira, quis um “salve” do STF para invalidar todas as decisões
da Justiça que o condenaram até agora ─ quis receber, oficialmente,
um certificado de indulto. Quase levou.Naturalmente, vai continuar tentando,
incentivado pela presença na suprema corte de ministros que militam abertamente
em favor da impunidade. Aposta na confusão, no desmanche progressivo do governo
que ele próprio legou ao país e nas “pesquisas eleitorais”. É, cada vez mais,
um tudo ou nada.
Leia mais
Merval Pereira: O futuro chegou
Roberto Motta: As instâncias da Justiça e as castas brasileiras
Helio Gurovitz: Uma sessão história do STF
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Na verdade, o que esteve realmente em jogo no STF
foi o desfecho de mais um confronto na guerra aberta que existe hoje para
controlar o futuro do Brasil. É algo maior do que Lula, ou mais que uma pura e
simples questão de justiça ─ a punição, como manda a lei, dos crimes
de corrupção e lavagem de dinheiro pelos quais ele foi condenado a doze anos de
cadeia nos dois níveis do Judiciário que o julgaram até o momento. A
verdadeira disputa, em toda essa história, sempre foi para decidir se
continuará a mandar no País, e a mandar na vida dos cidadãos, o sistema que
está mandando hoje. Você sabe muito bem que sistema é esse ─ e sabe
que Lula é no momento a figura mais importante para mantê-lo de pé.
Trata-se da vasta federação de gangues partidárias, empreiteiras de obras
públicas, altos burocratas do Estado, empresas que recebem favores do governo e
mais toda a multidão de parasitas que, de uma forma ou de outra, vive às custas
dos impostos que você paga dia e noite, e vai pagar até morrer. Essa gente está
destruindo o estado de direito democrático no Brasil ─quer dividir o país
em duas categorias de cidadãos, os que são obrigados a cumprir a lei e os que
estão autorizados a não respeitar lei alguma. É, no fim das contas, o
grande combo de aproveitadores do Tesouro Nacional, de um lado, e a população
brasileira, de outro. Eles operam em áreas diferentes, e têm caras diferentes,
mas no conjunto são a mesma coisa e produzem os mesmos desastres.
É isso, exatamente, o Brasil de
Lula ─ uma criatura deformada que foi sendo construída em torno e em
cima de nós durante os últimos quinze anos. Ela transformou a democracia
brasileira numa imitação degenerada do que deve ser um regime democrático
decente ─ recolheu tudo o que havia de mais maligno na vida pública
nacional até Lula chegar à presidência da República, somou a isso os vícios
novos trazidos ao governo pelo PT e produziu o país que aparece aí à sua
frente. Esse Brasil de Lula, que hoje está em guerra para sobreviver, é muitas
coisas ao mesmo tempo. É, em primeiro lugar, o país da
impunidade ─ onde se quer assegurar ao rico e ao poderoso, que
dispõem de dinheiro ilimitado para pagar advogados caríssimos, o direito de
cometerem crimes e não cumprirem, simplesmente, as penas a que foram
condenados.
O princípio jurídico pelo qual têm lutado com tanta
ferocidade ministros do STF, bandidos de bolso cheio e escritórios cinco
estrelas de advocacia penal, é o seguinte: qualquer criminoso bem apoiado por
defensores espertos, mesmo um assassino de crianças, só pode receber punição se
for condenado na “quarta instância”. Isso quer dizer, segundo eles, que é
preciso condenar o sujeito quatro vezes seguidas, durante anos a fio, para que
ele pague pelo crime que cometeu. Uma aberração como essa não existe, pura e
simplesmente, em nenhum país civilizado do mundo ─ ali um condenado
como Lula vai para a cadeia, e pronto. É claro que esse“princípio
legal” é apenas uma trapaça para não punir nunca o delito ─mesmo
porque, depois de anos e anos à espera de uma decisão, ele
“prescreve”, ou deixa de ser delito. Nossos altos magistrados ainda insultam a
população que lhes paga o salário (mais benefícios) dizendo que a liberdade até
a “quarta instância” é um “direito de todos os brasileiros”. É uma mentira
grosseira. Quem tem dinheiro para sustentar anos de processo na Justiça? A
“presunção de inocência” é coisa privativa de milionário. Dos 700.00 brasileiros
hoje na cadeia, quase 300.00 são presos “provisórios” ─ nada
de “instâncias”, e embargos, e agravos, e outras tramoias judiciárias para
eles. Os ministros pró-Lula, obviamente, querem que todos se lixem. Seu único
interesse, do primeiro ao último minuto, foi salvar a impunidade que abençoa a
elite brasileira há 500 anos, e da qual Lula é hoje o senhor de engenho número
1.
O Brasil de Lula é um Brasil sem Lava a
Jato ─ a operação judicial que pela primeira vez em toda a história
brasileira prendeu, processou e condenou a penas de prisão dezenas de marginais
de primeiríssima potência. São donos de empreiteiras, arquiduques das
diretorias supremas da Petrobras e outras estatais, altos executivos de
empresas, políticos ladrões, chefes de partidos e toda a subespécie de
delinquentes que vêm da mesma sarjeta. A principal atividade
de suas vidas é roubar o Estado, ou seja, roubar os impostos que você paga;
muitos confessaram seus crimes. Que prova melhor que isso alguém pode esperar?
Desde 1500 toda essa manada viveu, prosperou e se multiplicou sem ser
incomodada; é óbvio que quer continuar assim para sempre. Lula é o pau que
segura este circo. Mas é claro que não está sozinho: sua impunidade ajudaria a
impunidade de uma multidão de foras da lei. Alguém notou que praticamente
ninguém, num Congresso Nacional com 513 deputados e 81 senadores, abriu a boca
para comentar o julgamento do STF? Alguém notou o silêncio geral dos
governadores e prefeitos? Por que seria, não? Porque a grande maioria está no
mesmo barco de Lula, torcendo para ele, apavorada com a Lava a Jato e disposta
a tudo para continuar não apenas fora da cadeia, mas no desfrute da licença
oficial que têm para roubar. E o presidente da República,
então? Foi enfiado no cargo diretamente por Lula, que o impôs como vice na
chapa de Dilma Rousseff; sua calamidade é a calamidade do PT, que até há pouco
gritava “Fora Temer”. Está sendo acusado de crimes rasteiros, nomeia para o seu
ministério políticos que têm certificado público de ladrões do erário ─e,
obviamente, gostaria muito que os ministros do STF criassem a doutrina jurídica
da punição pós-morte, pela qual o indivíduo só poderia ser punido depois de
morrer.
Também esteve em julgamento no STF, lutando para
sobreviver, o Brasil da farsa. Neste país de mentira,
Lula é apresentado como tudo aquilo que não é. Os “juristas”, por exemplo,
sustentam que o ex-presidente é um cidadão que precisa ser protegido das
possíveis arbitrariedades da Justiça, como 200 milhões de outros; mantê-lo fora
da cadeia, segundo eles, não é nenhum favor pessoal, Deus nos livre e guarde,
mas apenas uma decisão corajosa que garante o direito “de todos”. Os cúmplices,
os serviçais e os simples devotos de Lula, por sua vez, afirmam que sua
condenação não tem nada a ver com o fato de que, segundo decidiu legalmente a
Justiça brasileira, ele é um ladrão, culpado dos crimes de corrupção e lavagem
de dinheiro. Lula, de acordo com eles, só está com 12 anos de cadeia nas costas
porque “é o maior líder de esquerda em todo o mundo”. Sendo assim, “o
capitalismo” jamais iria permitir que ele continuasse salvando os pobres do
Brasil. E a roubalheira alucinante da Petrobras, mais todo o resto do seu
governo? E os seus amigos e sócios no poder, que confessaram os próprios crimes
de corrupção? E os bilhões em dinheiro roubado que devolveram? Não é por aí,
jura o Sistema Lula. O único problema do chefe é ser um homem de esquerda.
Esse Brasil da farsa foi criado por anos seguidos
de propaganda em massa, toda ela paga com o seu dinheiro ─ da mesma
forma como é o seu dinheiro, e nenhum outro, que está pagando
esses honorários monstruosos para os advogados da turma toda, desde Lula até o
ladrãozinho mais meia-boca, desses que levam um Land Rover ou uma cozinha
equipada e se dão por satisfeitos. Não tem a ver apenas com o
presidente ─ vai muito além. Trata-se do país do trem-bala que não
existe, dos metrôs onde as estações para o aeroporto ou para o estádio, por
exemplo, ficam a 1 quilômetro do aeroporto ou do estádio, ou das ferrovias que
param no meio no nada ─enquanto os trilhos já postos são roubados
para serem vendidos a peso. Éo país do Maracanã, reconstruído para os
Jogos Panamericanos, depois para a Olimpíada e hoje abandonado ─ ou
do Museu do Ipiranga, o maior de São Paulo, fechado desde 2013 com a promessa
de ser reaberto em 2022. Neste país nenhuma obra pública é feita
levando em conta o interesse do público: ou sua função é beneficiar o
construtor e os seus cúmplices nos governos, ou então a obra não é construída.
O Brasil da mentira, que briga tanto para sobreviver, é o país do “avanço
social”, do “resgate dos pobres” e de outras invenções dos governos Lula e
Dilma. Até hoje não se sabe de nenhum rico que tenha ficado pobre em qualquer
desses dois reinados. Ao contrário, temos 150.000 milionários (em dólares) por
aqui, segundo as últimas contas; nenhum outro país da América Latina tem
tantos. Quem ganhou mais dinheiro no país das “conquistas sociais”? Marcelo
Odebrecht, o empreiteiro-modelo de Lula, ou o miserável do Bolsa Família?
Joesley Batista ou o pobre coitado da fila do ônibus? Quem se deu melhor, por
conta dos feitos do ex-presidente: os pobres que “começaram a andar de avião”
ou a turma que comprou jatinho? O “trabalhador brasileiro” ou Sérgio Cabral,
Eduardo Cunha, Geddel Vieira Lima e tantos outros aliados íntimos do Complexo
Lula-PT?
A decisão do STF não faz desaparecer este Brasil do
mal ─ nada, isoladamente, tem a capacidade de fazer tanto. Mas
colocou uma barreira, sem dúvida, no avanço de todos os que querem, através da
desmoralização aberta da lei, impedir que este país se torne uma democracia de
verdade.
Fonte: “Veja”, 05/04/2018
José Roberto Guzzo é do Conselho Editorial da Abril
e colunista das revistas "Exame" e "Veja
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